Entre os dias que vivemos e a forma como os vamos interiorizando e o que deles vamos retirando como aprendizagem vêm-sempre à ideia um texto de Jean-Jacques
Rousseau.
É tão coerente, tão presente, tão assertivo e verdade que causa causa desconforto, mas é...
A desigualdade
(...) O homem selvagem, quando acabou de comer, está em paz
com toda a natureza, e é amigo de todos os seus semelhantes. Se, algumas vezes,
tem de disputar o seu alimento, não chega nunca ao extremo sem ter antes
comparado a dificuldade de vencer com a de encontrar noutro lugar a sua
subsistência; e, como o orgulho não se mistura ao combate, ele termina por
alguns socos. O vencedor come e o vencido vai procurar fortuna noutra parte, e
tudo está pacificado. Mas, no homem da sociedade, é tudo bem diferente; trata-se,
primeiramente, de prover ao necessário, depois, ao supérfluo. Em seguida, vêm
as delícias, depois as imensas riquezas, e depois súbditos e escravos. Não há
um momento de descanso. O que há de mais original é que, quanto menos as
necessidades são naturais e prementes, tanto mais as paixões aumentam, e o que
é pior, o poder de as satisfazer. De sorte que, após longas prosperidades,
depois de haver devorado muitos tesouros e desolado muitos homens, o meu herói
acabará por tudo arruinar, até que seja o único senhor do universo. Tal é,
abreviadamente, o quadro moral, senão da vida humana, pelo menos das pretensões
secretas do coração de todo homem civilizado.
Comparai, sem preconceitos, o estado do homem civilizado com
o do homem selvagem, e investigai, se o puderdes, como além da sua maldade, das
suas necessidades e das suas misérias, o primeiro abriu novas portas à miséria
e à morte. Se considerardes os sofrimentos do espírito que nos consomem, as
paixões violentas que nos esgotam e nos desolam, os trabalhos excessivos de que
os pobres estão sobrecarregados, a moleza ainda mais perigosa à qual os ricos
se abandonam, uns morrendo de necessidades e outros de excessos; se pensardes
nas monstruosas misturas de alimentos, na sua perniciosa condimentação, nos
alimentos corrompidos, nas drogas falsificadas, nas velhacarias dos que as
vendem, nos erros daqueles que as administram, no veneno do vasilhame no qual
são preparadas; se prestardes atenção nas moléstias epidémicas oriundas da
falta de ar entre multidões de seres humanos reunidos, nas que ocasionam a
nossa maneira delicada do viver, as passagens alternadas das nossas casas para
o ar livre, o uso de roupas vestidas ou despidas sem precauções, e todos os
cuidados que a nossa sensualidade excessiva transformou em hábitos necessários,
e cuja negligência ou privação nos custa imediatamente a vida ou a saúde; se
puserdes em linha de conta os incêndios e os tremores de terra que, consumindo
ou derrubando cidades inteiras, fazem morrer os habitantes aos milhares; em uma
palavra, se reunirdes os perigos que todas essas causas acumulam continuamente
sobre as nossas cabeças, sentireis como a natureza nos faz pagar caro o
desprezo que temos dado às suas lições.
Jean-Jacques Rousseau, in 'Discurso Sobre a Origem da Desigualdade'